Minha mãe tinha 35 anos quando se viu parada na frente do Hospital das Clinicas de São Paulo, carregando duas crianças desenganadas, que não completariam a sua primeira década de vida, segundo a médica que lhe atendeu.
Uma das crianças era eu, a autora desse blog, que tem hoje 33 anos e um filho de 11. A outra era meu irmão, Luciano, hoje casado e com 30 anos.
Naquela época, quando se falava de anemia falciforme e talassemia (ainda mais as duas juntas), era quase como assinar um atestado de óbito antecipado. Para completar a situação, minha mãe tinha acabado de se aposentar por invalidez (por causa de um erro médico que lhe tirou a visão do olho esquerdo) e saía de um casamento de 4 anos que não havia dado certo.
A única instrução que a médica deu à minha mãe foi: “Mude-se para um lugar quente e dê os melhores anos que essas crianças possam ter.”
Ela enlouqueceu. Vendeu tudo o que tinha, e juntou a cara e a coragem e fomos todos para o interior. Foi assim que fomos parar em Jaú, terra dos meus avós maternos, de tios e primos distantes. No dia da mudança, a minha mãe decidiu que iria jogar o carro embaixo do primeiro treminhão (aqueles caminhões enormes que carregam cana) e matar nós três. Um anjo disfarçado de guarda rodoviário a parou antes e a escoltou (literalmente) até a cidade.
Ela não desistiu e correu atrás de todas as simpatias, promessas, esperança, benzeduras, terreiros, igrejas, enfim, qualquer coisa que diziam para ela fazer, ela fazia. Nós tomamos sangue de boi fresco, em jejum. Tomamos mentruz batido com leite, chá de picão e tantas outras coisas que eu nem me lembro mais.
Ainda assim, ela procurou os melhores centros especializados, em Campinas, em Ribeirão Preto, e lá fizemos todos os tratamentos disponíveis.
Em Ribeirão ficamos muitos anos sendo acompanhados pelo Dr. Marco Antonio Zago e sua equipe, depois pela Dra. Sarah e sua equipe, e também pelos hematologistas do convênio (sim, além do acompanhamento no HC de Ribeirão a gente ainda ia ao particular....) os Drs. Sebastião Ismael e José Bernardes.
Nós todos aprendemos muito, a minha mãe sempre fez questão que nós soubéssemos o que tínhamos e porque era feito isso ou aquilo.
E nós fomos crescendo. Tenho certeza que na cabeça da minha mãe, cada aniversário era uma grande conquista.
É claro que tivemos os nossos problemas, claro que tomamos vários sustos, como quando meu irmão foi operado para retirar o baço e sofreu uma parada cardio-respiratória, mas a gente sabia que a luta era dura, mas não impossível. As crises foram superadas, algumas demoraram mais, outras menos.
Enquanto a gente podia ficar debaixo das asas dela, ficamos. Mas um dia, nos tornamos adultos, e partimos para vôo solo. Meu irmão viajou para o exterior, foi fazer um tratamento experimental lá em Boston-MA, viajou de férias para Londres, casou. Dirige, joga bola (quer dizer, tenta....), namorou, trabalha. Bebe sua cervejinha de vez em quando, sai com os amigos....
Eu também fiz tudo que uma pessoa normal faz: trabalho, estudei, tive um filho lindo e saudável, casei com uma pessoa especial que me ajuda e me compreende, cuido da casa, faço faxina, viajo, bebo minha cerveja, enfim...
Nós nunca fomos tratados como especiais. Sempre foi muito claro pra nós que nós tínhamos limitações, sim, mas poderíamos fazer de tudo. Pra nós sempre foi muito certo que somos inteligentes, podemos produzir, trabalhar, estudar, amar.
Já tivemos casos de preconceito sim, alguns patrões que tivemos já nos disseram que nós provocávamos as crises, e que gostávamos de ficar doentes. Mas a gente não pode julgar a maioria por uns. Infelizmente (ou felizmente) as pessoas não sabem como é que acontece, como é a nossa dor, e que não somos nós que controlamos isso.
Muitas vezes as pessoas me perguntam como evitar as crises. Eu digo, não tem como. Vai acontecer, e quem é portador de AF sabe disso. Você pode estar assistindo televisão, num dia quente, super hidratado e tal, descansado e ter uma crise. Ou pode ir ao auge do esforço físico, do desgaste emocional e não ter nada.
O que pode ser feito é tentar evitar os fatores que desencadeiam as crises, como stress, desidratação, etc. Tentar não colaborar para que aconteça. Mas isso também não garante.
A internet me trouxe amigos virtuais, portadores de AF, com quem eu converso no MSN ou no Orkut, que trocam experiências comigo. Eu conheci uma moça que ela e o irmão tem AF e estão super bem, graças a Deus, e o irmão se trata com hydrea e tem 40 anos...
Hoje temos tantos médicos bons, tantos centros especializados, e temos acesso a muito mais informação do que há trinta anos atrás.
Essa troca de experiências é importante.
Mas ainda é muito difícil pra quem tem AF falar sobre isso. A gente vivia sobre a sombra do medo, de ficar doente na escola, de ficar doente na frente do namorado(a), de ficar doente na balada, dos outros acharem que a gente tem defeito, ou que a gente vai passar a doença, como se fosse catapora.
A gente vivia com medo de morrer jovem, de não poder ter filhos, não poder constituir família e de ser um encosto na vida dos pais, ser eternos dependentes.
E hoje a gente sabe que não é mais assim. Que bom, que bom!!!
Uma das crianças era eu, a autora desse blog, que tem hoje 33 anos e um filho de 11. A outra era meu irmão, Luciano, hoje casado e com 30 anos.
Naquela época, quando se falava de anemia falciforme e talassemia (ainda mais as duas juntas), era quase como assinar um atestado de óbito antecipado. Para completar a situação, minha mãe tinha acabado de se aposentar por invalidez (por causa de um erro médico que lhe tirou a visão do olho esquerdo) e saía de um casamento de 4 anos que não havia dado certo.
A única instrução que a médica deu à minha mãe foi: “Mude-se para um lugar quente e dê os melhores anos que essas crianças possam ter.”
Ela enlouqueceu. Vendeu tudo o que tinha, e juntou a cara e a coragem e fomos todos para o interior. Foi assim que fomos parar em Jaú, terra dos meus avós maternos, de tios e primos distantes. No dia da mudança, a minha mãe decidiu que iria jogar o carro embaixo do primeiro treminhão (aqueles caminhões enormes que carregam cana) e matar nós três. Um anjo disfarçado de guarda rodoviário a parou antes e a escoltou (literalmente) até a cidade.
Ela não desistiu e correu atrás de todas as simpatias, promessas, esperança, benzeduras, terreiros, igrejas, enfim, qualquer coisa que diziam para ela fazer, ela fazia. Nós tomamos sangue de boi fresco, em jejum. Tomamos mentruz batido com leite, chá de picão e tantas outras coisas que eu nem me lembro mais.
Ainda assim, ela procurou os melhores centros especializados, em Campinas, em Ribeirão Preto, e lá fizemos todos os tratamentos disponíveis.
Em Ribeirão ficamos muitos anos sendo acompanhados pelo Dr. Marco Antonio Zago e sua equipe, depois pela Dra. Sarah e sua equipe, e também pelos hematologistas do convênio (sim, além do acompanhamento no HC de Ribeirão a gente ainda ia ao particular....) os Drs. Sebastião Ismael e José Bernardes.
Nós todos aprendemos muito, a minha mãe sempre fez questão que nós soubéssemos o que tínhamos e porque era feito isso ou aquilo.
E nós fomos crescendo. Tenho certeza que na cabeça da minha mãe, cada aniversário era uma grande conquista.
É claro que tivemos os nossos problemas, claro que tomamos vários sustos, como quando meu irmão foi operado para retirar o baço e sofreu uma parada cardio-respiratória, mas a gente sabia que a luta era dura, mas não impossível. As crises foram superadas, algumas demoraram mais, outras menos.
Enquanto a gente podia ficar debaixo das asas dela, ficamos. Mas um dia, nos tornamos adultos, e partimos para vôo solo. Meu irmão viajou para o exterior, foi fazer um tratamento experimental lá em Boston-MA, viajou de férias para Londres, casou. Dirige, joga bola (quer dizer, tenta....), namorou, trabalha. Bebe sua cervejinha de vez em quando, sai com os amigos....
Eu também fiz tudo que uma pessoa normal faz: trabalho, estudei, tive um filho lindo e saudável, casei com uma pessoa especial que me ajuda e me compreende, cuido da casa, faço faxina, viajo, bebo minha cerveja, enfim...
Nós nunca fomos tratados como especiais. Sempre foi muito claro pra nós que nós tínhamos limitações, sim, mas poderíamos fazer de tudo. Pra nós sempre foi muito certo que somos inteligentes, podemos produzir, trabalhar, estudar, amar.
Já tivemos casos de preconceito sim, alguns patrões que tivemos já nos disseram que nós provocávamos as crises, e que gostávamos de ficar doentes. Mas a gente não pode julgar a maioria por uns. Infelizmente (ou felizmente) as pessoas não sabem como é que acontece, como é a nossa dor, e que não somos nós que controlamos isso.
Muitas vezes as pessoas me perguntam como evitar as crises. Eu digo, não tem como. Vai acontecer, e quem é portador de AF sabe disso. Você pode estar assistindo televisão, num dia quente, super hidratado e tal, descansado e ter uma crise. Ou pode ir ao auge do esforço físico, do desgaste emocional e não ter nada.
O que pode ser feito é tentar evitar os fatores que desencadeiam as crises, como stress, desidratação, etc. Tentar não colaborar para que aconteça. Mas isso também não garante.
A internet me trouxe amigos virtuais, portadores de AF, com quem eu converso no MSN ou no Orkut, que trocam experiências comigo. Eu conheci uma moça que ela e o irmão tem AF e estão super bem, graças a Deus, e o irmão se trata com hydrea e tem 40 anos...
Hoje temos tantos médicos bons, tantos centros especializados, e temos acesso a muito mais informação do que há trinta anos atrás.
Essa troca de experiências é importante.
Mas ainda é muito difícil pra quem tem AF falar sobre isso. A gente vivia sobre a sombra do medo, de ficar doente na escola, de ficar doente na frente do namorado(a), de ficar doente na balada, dos outros acharem que a gente tem defeito, ou que a gente vai passar a doença, como se fosse catapora.
A gente vivia com medo de morrer jovem, de não poder ter filhos, não poder constituir família e de ser um encosto na vida dos pais, ser eternos dependentes.
E hoje a gente sabe que não é mais assim. Que bom, que bom!!!